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David Harvey, à Carta Maior: ‘Jogos Olímpicos têm uma longa história de desalojamento de populações’

A luz de seu novo livro, Para entender O capital (Editora Boitempo), o geógrafo David Harvey falou com exclusividade à Carta Maior sobre o histórico de desalojamento de populações e focos de resistência envolvendo megaeventos. Além disso, fez sugestões de leitura sobre a atual fase de desenvolvimento do capital.

Em virtude do lançamento de seu novo livro, Para entender O capital, o geógrafo David Harvey falou com exclusividade à Carta Maior sobre seus últimos trabalhos, o histórico de desalojamento de populações e focos de resistência envolvendo megaeventos e, entre outras coisas, fez sugestões de leitura sobre a atual fase de desenvolvimento do capital.

Convencionou-se apresentar Harvey como “um dos teóricos marxistas mais influentes da atualidade” e “o geógrafo acadêmico mais citado do mundo”. De fato, o distinguished professor da Universidade da Cidade de Nova York pode ser considerado, ao lado de Slavoj Žižek, o intelectual público marxista de maior reconhecimento internacional.

Mas enquanto o filósofo esloveno costuma ser conhecido pela fala exaltada e suas declarações extravagantes sobre a cultura, o britânico construiu sua reputação permanecendo contido e acessível. A crítica do filósofo Ruy Fausto a Žižek, de que ele seria “um perfeito representante da indústria cultural ou, mais precisamente, da grande mídia”, responsável por “momentos extraordinários de marketing”, não cabe ao lacônico David Harvey.

O livro, lançado pela Editora Boitempo, nasceu dos 40 anos de aulas sobre O Capital, de Karl Marx. A íntegra em vídeo do curso encontra-se disponível no seguinte endereço: http://davidharvey.org/reading-capital/. Há dois anos, os estudantes da Universidade da Cidade de Nova Iorque iniciaram um projeto aberto de inserção de legendas nos vídeos, que estão em processo de tradução para 37 línguas.

Além desse incansável esforço relativo à obra-prima de Karl Marx, o geógrafo é um dos grandes responsáveis pela categorização geográfica da dinâmica do capital. Sua produção bibliográfica conta com alguns escritos já clássicos, outros, também elogiadíssimos, de circulação mais modesta.

Do primeiro grupo podemos citar A produção capitalista do espaço, O novo imperialismo e Condição pós-moderna, em que é descrita a relação entre as transformações econômicas e culturais contemporâneas.

Do segundo, Paris, capital of modernity [Paris, capital da modernidade], uma análise da modernização da capital francesa conduzida pelo Barão Haussmann à época de Napoleão III lançando mão dos escritos de Flaubert, Marx e Balzac, e Rebel Cities – from the right to the city to the urban revolution [Cidades Rebeldes – do direito à cidade à revolução urbana], que identifica movimentos como a Comuna de Paris e Occupy Wall Street na chave das insurreições urbanas e percebe a urbe como principal espaço de luta pela superação do capitalismo.

A vinda de David Harvey ao Brasil faz parte do evento Marx: a criação destruidora. Em maio, um curso com curadoria de José Paulo Netto dará prosseguimento ao evento.

“O capital”, por David Harvey

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Confira abaixo a entrevista concedida por David Harvey a Renato Pompeu da revista Caros Amigos, sobre seu novo livro Para entender O capital. A tradução é de Rogério Bettoni e Clarice Goulart.

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O geógrafo britânico David Harvey lança no Brasil Para entender O capital em que reúne e expande uma série de aulas on-line que obtiveram muita repercussão. Na entrevista, o geógrafo fala do novo livro e do que representa a obra de Marx para as novas gerações.

Caros Amigos – Seu livro A Companion to Marx’s ‘Capital’ recebeu em português o título Para entender O capital. Você poderia nos explicar o que pensava quando decidiu escrever esse livro? Como se deu todo o processo? Você acha que atingiu o objetivo desejado? 

David Harvey – O livro surgiu a partir das aulas que ministrei e que foram disponibilizadas online para quem quisesse assistir e escutar. A partir daí, percebi uma demanda para que eu publicasse uma versão escrita, o que acabou sendo bem mais difícil do que imaginei que seria. Então eu transcrevi as aulas, f1z algumas modificações e ampliei algumas partes que julguei necessárias; o resultado culminou no compêndio A Companion to Marx’s ‘Capital’, publicado aqui como Para entender O capital.

Eu tenho uma maneira muito particular de interpretar os textos, e por isso tentei usar a mesma abordagem ao ministrar as aulas e escrever o livro, de modo que nem todos tivessem de aceitar minha interpretação. Eu queria que o livro funcionasse como uma espécie de diálogo com o público, como uma conversa: “Olhe o que Marx está dizendo, esta é a minha interpretação, o que você acha?” Essa era a ideia inicial; se funcionou bem, não sei dizer. Só sei que o livro tem recebido críticas positivas, é evidente que está sendo usado, as aulas têm sido amplamente assistidas, e tenho encontrado pessoas que consideram o livro uma ferramenta muito útil, que impulsiona um maior entendimento dos textos de Marx.

Outro dia recebi um e-mail, por exemplo, de um senhor que deveria estar nos seus setenta anos, dizendo ter participado de movimentos políticos a vida inteira e nunca ter conseguido ler O capital de Marx, apesar de sempre ter tido vontade; agora, com a ajuda das aulas e do livro, ele finalmente conseguiu. Ele foi um sindicalista veterano que participou ativamente durante anos dos movimentos políticos na Califórnia. Está sendo uma ótima experiência, e fico muito feliz com o resultado. Espero muito que o livro funcione nesse nível.

O título em português, Para entender O capital, nos faz lembrar de um texto escrito por Lenin, em 1916, nos Cadernos Filosóficos. Cito aqui uma passagem: “Para que possamos realmente entender O capital, de Marx, e para que possamos particularmente entender seu primeiro capítulo, devemos antes ler e entender completamente A Ciência da Lógica, de Hegel. Cinquenta anos depois de Marx, nenhum marxista entendeu Marx”. Isso indica que Lenin acreditava que Engels, Kautsky, Stalin, Trotsky e Rosa Luxemburgo não entendiam as ideías de Marx por completo. Você concorda com essa afirmação de Lenin? Você já leu A Ciência da Lógica, o livro mais obscuro e indecifrável já escrito? O que tem a dizer sobre isso?

Eu discordo de Lenin. Obviamente, Marx foi influenciado por Hegel. O quanto ele foi influenciado por Hegel ao escrever O capital depende de qual parte da obra você analisar. Eu procuro ler Marx analisando apenas o texto e procuro entender o que ele estava querendo dizer. Você poderia argumentar que é preciso entender a Lógica de Hegel para entender Marx, ou que para entender Marx é preciso entender Espinoza, ou mesmo entender tantos outros grandes filósofos, algo pouco provável de acontecer, independente do caso. Eu sempre procurei começar por uma pergunta muito simples: aqui está o texto, aqui está o que ele defende, então vamos refletir sobre o que ele diz e tentar trabalhar diretamente com ele, sem tentar impor nenhum tipo de conhecimento prévio. Mas é claro que há momentos em que é preciso reconhecer o embasamento de determinada formulação. Há momentos em que acho importante reconhecer que O capital é construído como uma crítica da economia política.

Portanto, é preciso conhecer Ricardo, Adam Smith, Stuart, e todos os grandes economistas políticos porque, na verdade, tudo aconteceu de forma involuntária. Marx nunca estudou o capital de forma empírica. Ele coletou os pensamentos elaborados por economistas políticos, e a partir de um método de análise crítica, inferiu um modo diferente de como o capital funcionava. Conforme eu disse, há momentos em que é necessário saber alguma coisa sobre a origem das ideias, e de vez em quando tento indicar alguma relação, por exemplo, com Ricardo, ou se julgo que algo tenha uma relação direta e óbvia com Hegel, ou se há influências dos sociólogos franceses. Por exemplo, é preciso reconhecer que Marx estava competindo com Proudhon, e não era sempre justo com ele. Às vezes ele o ataca sem razão; em outras ocasiões é justificável. Na verdade, ele está tentando estabelecer uma linha de pensamento. Eu convido as pessoas a pensarem sobre eles e a lê-los com profundidade, assim como eu procuro fazer.

Algumas pessoas, como o professor brasileiro Alonso Barbosa de Oliveira, da Unicamp, defendem que os Grundrisse, de Marx, publicados na década de 1930 (material este que nunca chegou a ser lido por Lenin) substitui com vantagem A Ciência da Lógica, uma vez que os Grundrisse abordam de maneira mais clara tudo que era importante em Hegel. Paradoxalmente, há, hoje em dia, uma quantidade maior de pessoas que entendem Marx melhor do que nos dias de glória do marxismo. Você concorda com essa afirmação?

Eu simplesmente diria que os Grundrisse de Marx, são uma fonte magnífica, mas, ao mesmo tempo, extremamente difícil de se lidar. Note-se que, em certas ocasiões, Marx claramente se baseia em formulações hegelianas, e o interessante é que, às vezes, o próprio Marx observa que suas formulações estão muito hegelianas, e diz que precisa voltar para si mesmo novamente. Eu acho que é difícil tecer alguma conclusão mais pontual, mas é com certeza um texto muito rico e instigante. É um texto que expõe o modo como Marx pensava e percebia as coisas, e por isso concordo em dizer que foi por isso que a obra se tornou disponível para nós. Eu acho que o nosso entendimento de Marx evoluiu como consequência disso, mas mesmo que o material tenha vindo a público no final da década de 1930, só tivemos contato com a obra a partir da década de 1970, pelo menos no mundo anglo-saxônico. [10:36 “”7 10:54 – muito barulho na sala, trecho não traduzido]

Você concorda que hoje há mais pessoas que entendem melhor o pensamento marxista?

Eu realmente não sei dizer. Acho que Marx era entendido, de forma bastante ampla, por meio de representações difundidas por diferentes partidos comunistas, e por essa razão tratava-se de interpretações ortodoxas de Marx, muito presentes em países com partidos comunistas, como França e Itália, até certo ponto. Esses partidos, por sua vez, diminuíam a importância da interpretação de Marx, o que resultou em tempos difíceis, e só agora temos abordagens mais independentes, incluindo a minha, que não estão ligadas a nenhum partido especificamente, mas procuram estabelecer, como consta no livro, o recomeço de um movimento anticapitalista, a partir de uma melhor compreensão da natureza do capitalismo.

Algumas pessoas, como o filósofo marxista francês Louis Althusser, argumentam que O capital é o único texto escrito por Marx que é inteiramente válido na era contemporânea. No entanto, ele mesmo confessa ter lido somente o volume I e não conhecer os outros três volumes, incluindo a teoria da mais-valia; ou seja, concluímos que Althusser não entendia as teorias de O capital, em parte por não tê-lo lido inteiramente. O que você tem a dizer sobre isso?

Concordo plenamente com isso, eu já ouvi dizer que Althusser nunca leu o volume II. Marx afirma que o conceito válido de O capital é quando se entende a relação contraditória entre produção e realização, sendo produção o tópico abordado no volume I, e realização no volume II. Se você não entende os dois volumes, certamente não entenderá o que Marx defendia. É o mesmo que tentar escrever uma análise sobre a questão de gênero sem mencionar as mulheres. Então, se você se basear somente no volume I, terá uma visão unilateral da obra de Marx. No compêndio do volume II, que acabei de terminar, eu tento equilibrar essa visão ao sugerir que é preciso que os dois volumes sejam colocados no mesmo patamar se quisermos realmente entender a economia política de Marx.

Mesmo depois de toda sua obra, Marx afirmou, em certa ocasião, ter feito somente duas grandes descobertas: o conceito de mais-valia e a constatação que o modo de produção capitalista não é eterno. O que você pensa a respeito dessas duas considerações?

Bom, acho que ele descobriu muitas coisas importantes, mas, é verdade que a teoria da mais-valia é a ruptura com a economia política clássica, pois é construída a partir de noções completamente distintas do que é a produção. Eu acho que, às vezes, é bem difícil demonstrar para os alunos que quando Marx explicava a noção de produção, ele não estava falando de uma produção física, e sim de uma produção da mais-valia. E a mais-valia tem uma relação social, e a produção e reprodução dessa relação social são absolutamente fundamentais para a teoria social de Marx. Obviamente, Marx queria proteger o capital de teorias que buscavam a verdade eterna; uma vez que o capital tinha raízes na natureza, Marx o considerava como algo mutável, dinâmico. Assim ele defendia uma abordagem de construção histórica, e cabia ao futuro da história dizer se o capital seria algo sustentável, ou não; eterno, ou não.

Para alguns, como Engels, Marx provou com O capital que o modo de produção capitalista tinha limitações econômicas que inevitavelmente implicariam seu fim. Para outros, como Lenin, Marx provou com O capital que o modo de produção capitalista não tinha nenhuma limitação econômica, pois economicamente falando, ele é capaz de renascer após cada grande crise econômica. No entanto, Lenin acreditava que Marx havia demonstrado que o modo de produção capitalista tinha limitações que acabariam levando ao seu fim, devido à sua impossibilidade de satisfazer as aspirações políticas da população. Era preciso que uma resistência política fortemente organizada se formasse contra o modo de produção capitalista, caso contrário, mais uma vez, ele renasceria.

Na minha opinião, há três grandes contradições com as quais o capital se depara. Não tenho tanta certeza de que a primeira seja uma contradição, mas diz respeito à questão ambiental da produção. Historicamente, o capital sempre foi tido como algo sofisticado ao lidar com limitações ambientais, passando por cima delas, seja de forma tecnológica, organizacional e/ou social. Acredito que não seja algo que vá se desfazer amanhã por haver uma crise ambiental, mas acho que o que vemos hoje em dia são questões ambientais que estão se tornando cada vez mais opressoras, e o capitalismo precisa descobrir novas maneiras de abordá-as. Se ele poderá abordá-las de tal forma que consiga manter a acumulação do capital é uma pergunta ainda sem resposta. Eu tenho minhas dúvidas, e incluo aqui a questão ambiental como uma das contradições fatais.

Para mim, a segunda contradição fatal é o crescimento composto. Para Marx, o capital se resumia sempre em crescimento. Historicamente, os dados sugerem que o capitalismo tem crescido numa média de 2,25% ao ano, desde o século XIX. Isso é uma taxa composta, e como sabemos, o crescimento composto tem uma curva de crescimento exponencial; de início ela é bastante rasa, aos poucos ela cresce e atinge um ponto de curvatura logo em seguida, e depois cresce com inclinação acentuada. Atualmente, nos encontramos exatamente no ponto de inflexão. A quantidade de novas e lucrativas oportunidades de investimentos que precisamos encontrar no momento impulsiona o capitalismo algo em torno de 1, 5 trilhão de dólares. Se voltarmos a atingir com êxito a taxa de 3% de crescimento composto, significaria que quando chegarmos em 2030, atingiríamos um investimento perto de 3 trilhões de dólares. Em vinte, trinta anos, atingiríamos 60 trilhões. Vale lembrar que estamos usando o crescimento composto, e não é possível prever ameaça de crescimento. Acho que já vivenciamos nos últimos vinte, trinta anos, algumas das tensões que se originaram a partir daí. Considero também, que a passagem para o financiamento de ativos em vez de fazer e produzir coisas é uma reflexão da dificuldade de encontrar oportunidades lucrativas de investimentos. Então, considero que esta é a segunda contradição fatal que enfrentamos agora.

A terceira se aproxima um pouco do que Lenin afirmou em relação à “alienação universal” – o nível de descontentamento da população, o que prova que o capital, em vez de proporcionar felicidade para a grande massa da população, está proporcionando muito estresse e muita insatisfação. As tecnologias capitalistas estão transformando a mão de obra em algo cada vez mais redundante. Vemos situações no mundo inteiro em que a mão de obra está se tornando cada vez mais uma força de trabalho descartável. Eu adoraria presenciar uma revolta em algum momento. Para Lenin essa revolta deve ser organizada, e concordo com ele; acho que isso está entre os outros limites que tangem uma alienação universal, algo cada vez mais difícil de conter politicamente.

Lenin também escreveu que “Para que uma revolução aconteça, não basta que as classes mais baixas vivam como antes; é preciso que as classes mais altas não possam mais viver como antes”. Você acha que esse conceito nos ajuda a entender por que as pessoas estão constantemente protestando na ruas, como aconteceu com a Primavera Árabe e em tantas outras crises na Europa, na verdade sem levar a nenhuma mudança (exceto em pequenos países como Islândia e Chipre), e também sem atingir em nada a classe alta?

Penso que precisamos ter cautela para não interpretarmos erroneamente alguns do movimentos que vêm acontecendo. Não classifico, por exemplo, a grande maioria dos movimentos ligados à Primavera Árabe como movimentos anticapitalistas, e sim como movimentos pró-democratas. Há um forte elemento burguês nesses movimentos, o desejo de uma democracia burguesa e o desejo de sair da crise da democracia burguesa. Acho que o que estamos vivendo é, no entanto, o capital negando a democracia burguesa, não só em lugares nos quais havia um pertencimento ao mundo colonial do passado, mas também em países onde o governo foi derrubado, como a Grécia e Itália.

Ao impor tecnocratas, você derruba a democracia burguesa. Penso que os mal-entendidos oriundos da direita dos Estados Unidos é que eles realmente acreditam que as promessas da democracia burguesa foram destruídas por instituições como o Federal Reserve, ou pelo controle do poder do dinheiro ou do aparelho estatal. Alguns dos movimentos ao redor do mundo almejam recuperar um tipo de base democrática, e o que não estamos percebendo de forma clara é que o capitalismo é antagônico à democracia. Sempre acreditamos que o capitalismo favorece a democracia; por exemplo, a chegada do capitalismo à China signiftca que a China precisa criar uma democracia, e isto não está acontecendo. Então, o que precisamos avaliar são as associações feitas entre capital e autocracia, particularmente no que diz respeito ao aumento de uma militarização, o que entendo como uma revolta contra o fracasso de manter uma democracia burguesa, podendo assim, em algum momento, se transformar em uma revolta contra o próprio capitalismo. Ainda não chegamos lá; me parece que é o caso, por exemplo, de Chipre, onde as revoltas nas ruas não eram necessariamente contra o capital, e sim contra a gestão autocrática do capital e o fracasso de seguir as regras da democracia burguesa. Então, acho que precisamos ser cautelosos para evitar interpretar os sinais dos protestos atuais como puramente anticapitalistas. Há um desejo em favor da teoria da democracia burguesa que nunca se concretizou; os protestos se aproximam mais da linha de um capitalismo mais justo, porém não chegamos ao ponto em que as pessoas se convenceram de que o capital não consegue gerar uma democracia, ou que o capital deve gerar uma autocracia, militarização, e, por fim, um controle militar.

O que você pensa a respeito da questão em torno das revoluções atuais? Algumas pessoas acreditam que você defende que os servidores públicos são mais vanguardistas do que os operários. Está correto? O que você tem a dizer sobre isto?

Não, não são os servidores públicos que desempenham um papel mais importante. Eu acho que precisamos nos distanciar um pouco da ideia de que os operários estão no centro da vanguarda, em parte porque quando olho para algo como a Comuna de Paris, vejo que não foram os operários que a construíram, e sim os artesãos, dissidentes da burguesia, uma vasta gama de pessoas que estavam basicamente lutando para defender a ideia de uma outra cidade. Então acredito que muitos dos movimentos, historicamente falando, tiveram um caráter urbano; os movimentos ocorridos em Paris entre 1847 e 1848 foram movimentos urbanos; não foi apenas algo movido por operários. Se olharmos para a Revolução Russa, e o que podemos dizer a respeito da dimensão urbana em torno dela, é que ela foi bastante forte. Por exemplo, os protestos em São Petersburgo em 1905. Se olharmos para a América Latina, vemos eventos recentes em El Alto, na Bolívia, o que pode ser considerado como um protesto urbano, bem como eventos históricos como os de Córdoba em 1969.

Eu sempre tive a impressão de que os marxistas não prestavam atenção suficiente na organização. E se pensarmos em organização como um campo de acúmulo de capital, o que certamente é, e se pensarmos na vida urbana como o centro de economias de desapropriação, mas também de economias de exploração, eu diria que todo mundo que esteja produzindo e reproduzindo dentro da vida urbana deveria estar no centro do pensamento, e deveríamos nos perguntar como mobilizar essa parcela da população, que às vezes, se encontra nas fábricas, mas muitas vezes também se encontra entre os que estão na rua, como os motoristas de caminhão e táxi; mas, se os motoristas de caminhão e táxi fizessem greve, provavelmente a cidade pararia. E se a cidade para, o prejuízo é tão grande quanto se parássemos uma fábrica, aliás, o prejuízo é muito maior do que quando paramos uma cidade. Então se quisermos lidar com toda essa situação, por exemplo, no Rio em relação aos jogos olímpicos, é só parar a cidade.

Para mim, este ato é tão importante politicamente quanto o ato de parar uma fábrica. Desde o lançamento do meu primeiro livro sobre a cidade e a justiça social, eu sempre defendi que devemos prestar atenção nesta dimensão urbana de lutas, e muitos marxistas são relutantes em abrir mão dessa ideia uma vez que ela pertence ao partido comunista. Não sabemos se os vanguardistas da classe trabalhadora ainda estão nas fábricas. Pois as fábricas já desapareceram de grande parte do mundo; elas se mudaram para a China, Bangladesh e outros lugares do tipo, então essa teoria pode funcionar nesses lugares, mas certamente não funciona em cidades como Baltimore, Nova Iorque, Detroit; lá há outros tipos de batalhas que precisam ser travadas. Vemos pelos sinais que os protestos estão por todos os lados nas ruas. As pessoas param o funcionamento da cidade, colocam obstáculos nas ruas, tentam parar praticamente tudo. Sim, os piqueteros em Buenos Aires, por exemplo, eles pararam as ruas e este ato foi em nome do movimento político. Ou quando os motoristas de caminhão fizeram a greve contra Allende em 1973, os resultados foram muito sérios para ele. Precisamos manter os motoristas de caminhão do nosso lado.

Você, como geógrafo, discute em seus livros questões ligadas à ocupação e ao funcionamento do espaço geográfico, em particular o espaço urbano. Você conhece os trabalhos do professor brasileiro Milton Santos, que também era geógrafo, sobre essas questões? O que você conhece a respeito da cultura e política brasileira, e também das condições sociais e econômicas?

Não tenho conhecimento suficiente sobre o contexto brasileiro e suas condições. Conheço certamente os trabalhos de Milton Santos e penso que suas análises a respeito dos diferentes “circuitos do capital” foram importantes porque nos alertaram sobre a ideia de movimento contínuo do capital através de diferentes circuitos. Milton foi uma grande inspiração para muitos de nós. Em um dado momento, acho que ele decidiu que não gostava do mundo anglo-saxônico, para ele nós éramos os imperialistas, mas curiosamente ele amava a França. De alguma forma, a França não era considerada imperialista, nunca entendi como ele pôde ter essa postura. Acho que, em alguns aspectos, Milton foi uma figura negligenciada entre muitos geógrafos de esquerda.

Nós publicamos alguns de seus trabalhos no periódico Antipode nos anos 1970, que receberam certa atenção, mas não foram amplamente conhecidos como deveriam ter sido. Qual a relevância de O capital nos dias de hoje? Ele consegue nos ajudar a entender a crise capitalista global contemporânea, e de que modo ele nos ajuda a enfrentá-la? Aqui entre nós, será possível realmente entender O capital e o que precisamos fazer para tentar entendê-lo? Ler seu livro apenas?

Bem, acho que esta é uma pergunta muito interessante, e eu sempre procuro colocar para os alunos da seguinte maneira: “O que Marx tem a nos ensinar?” e “O que precisamos absorver para conseguirmos entender o que acontece ao nosso redor?”. Marx nos proporcionou alguns insights e ferramentas muito fortes para entendermos o mundo; mas se tratava de um projeto incompleto e acho que quando ele escreveu, ele o fez a partir de certas suposições que não nos ajudam muito a entender a conjuntura atual. Há muito que precisamos fazer por conta própria.

Pessoalmente, minha familiaridade com Marx tem sido extremamente útil ao escrever uma vasta gama de livros. Entre os assuntos que abordo em Condição pós-moderna, por exemplo, que é um livro bem conhecido aqui, está o conceito de compressão tempo-espaço. De onde ele vem? Do volume II de O capital. Eu não costumo citar Marx o tempo todo, algo que seria extremamente chato se eu o fizesse, as pessoas ficariam entediadas ao me escutar. Mas como eu dizia, eu não poderia ter escrito Condição pós-moderna, que é um livro bastante amplo, sem ter escrito The Limits to Capital [Os limites ao capital, Boitempo, no Prelo], que é uma análise bem atenta de Marx.

Eu não poderia ter escrito meus estudos sobre Paris, que considero muito importantes, se eu não tivesse escrito The Limits To Capital. Assim como eu não poderia ter escrito A Brief History of Neo Liberalism, se eu não tivesse trabalhado com o The Limits to Capital. Em outras palavras, temos um efeito de âncora a partir de um maior entendimento de Marx, você não sente que ele esteja amarrado em volta do seu pescoço, como se você só pudesse saber o que Marx sabia. Marx deve funcionar como uma base que nos permite tomar diferentes direções. Eu prefiro tomar a direção urbana. Marx nunca elaborou muito sobre organizaçao, e no entanto eu acho seus insights sobre arrendamento da terra e finanças simplesmente fantásticos. É preciso que as pessoas estejam preparadas para abordar seus pressupostos como base, e assim saber apreciar o que Marx pôde nos dizer, e, acima de tudo, apreciar o que ele não pôde nos dizer, e, consequentemente entender que há muito que precisamos fazer por conta própria.

Essa atitude funciona para mim perfeitamente, mas só posso afirmar isso a partir da minha experiência pessoal. Escrevo livros que têm alguma relevância para a conjuntura contemporânea, como o livro sobre neoliberalismo, e o outro sobre cidades rebeldes. E, se posso fazer isso, é devido à minha base em Marx. Esses livros foram desenvolvidos para abordar as circunstâncias contemporâneas e espero que, de alguma forma, sejam úteis para as pessoas de esquerda.

Conferência de David Harvey em Porto Alegre

O geógrafo David Harvey esteve em Porto Alegre para apresentar a conferência “Para entender O capital“, por ocasião do lançamento de seu livro homônimo. A mediação é do historiador Mathias Luce.

A conferência, ocorrida no dia 25 de março de 2013 no Teatro da Associação Médica do Rio Grande do Sul-AMRIGS, teve realização da Boitempo Editorial e da Fundação Lauro Campos, com apoio da Câmara Municipal de Porto Alegre.

Todas as atividades do projeto Marx: a criação destruidora, estão sendo gravadas e disponibilizadas no canal da Boitempo no YouTube!

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Saiba mais sobre Para entender ‘O capital, de David Harvey: http://bit.ly/10HKd7q

Saiba mais sobre a edição definitiva d’O capital, de Karl Marx: http://bit.ly/16IVpCO